terça-feira, 30 de outubro de 2012



Genealogia

A camisa tinha de ser com botões, colarinho e bolso.
Bom também, se fosse c’umas listras,
finas, miudamente separadas
por um espaço de nada.
Tinha um jeito tão certo
de sustentar as mãos cruzadas atrás das costas.
Por ele, eu sentia metade-metade:
metade medo, metade amor.
Era quase religioso, o modo contido de falar das coisas
sabendo qu’eu nem ia precisar de muito.
Já eu, contia o indizível.
O fumo, o fonógrafo
qu’inda não pus significado competente,
pretendo guardar feito relíquia.
Não estabeleci margem segura
pra saber que tanto dele
tenho na carne que segura minha unha.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012



Madura


Pelo menos uma vez na vida
é bom ficar cintilante às seis e meia da manhã
junto c’as folhas eucaliptais.
Ana tem um jeito enxuto de falar
de estar sempre desembaraçada.
Quando me deito, tem noites,
cravo na língua impropérios
n’outro dia
arrasto os móveis
mudando a cara das coisas.
Aí falo:
"-eu, Ana, m’embaraço
na perna
no cabelo que sobra da minha nuca
descansando o couro."
Ana sabe usar bem as cores.
O amarelo da blusa é quase ultrajante.
Sinto que todos os dias
ela sabe cintilar.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012


Alegria emprestada

Pipa de menino
que sonha avião em céu virgem
é o que basta,
pr’eu olhar pro chão
pro muro
pro portão
e achar tudo bonito.
Senti cócegas e desprendi um risinho fino.
Teologo,
sento e vacilo os olhos
as mãos e o sono
e acordo suando frio.
Volto à janela
revejo as pipas
e além delas
me alegro por um canteiro de margaridas.